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set 22, 2021 836 0 Bishop Robert Barron, USA
ENVOLVA-SE

PAPA FRANCISCO, “FRATELLI TUTTI”, E O DESTINO UNIVERSAL DOS BENS

Na esteira da publicação da mais recente encíclica do Papa Francisco, Fratelli Tutti, houve muitos comentários negativos a respeito da atitude do Papa em relação ao capitalismo e à propriedade privada. Muitos leitores interpretaram que Francisco quis dizer que o sistema capitalista é, por si só, explorador e que a posse da propriedade privada é moralmente problemática. Como a maioria dos que escrevem de um modo profético, o Papa Francisco é de fato dado a uma linguagem forte e desafiadora e, por isso, é fácil entender como ele provoca oposição. Contudo, o mais importante é ler o que ele diz com cuidado e interpretá-lo dentro do contexto da longa tradição do ensino social católico.

Primeiramente, em relação ao capitalismo, ou o que a Igreja prefere chamar de “economia de mercado”, o Papa diz o seguinte: “a atividade empresarial é essencialmente ‘uma vocação nobre, voltada para a produção de riquezas e a melhoria do nosso mundo'” (Fratelli Tutti, 123). Com isso, ele se distancia de qualquer ideologia que simplesmente demoniza o capitalismo, e afirma claramente que um arranjo econômico moralmente louvável é aquele que não só distribui riqueza, mas que a cria através do empreendedorismo. Além disso, ele argumenta, um certo interesse próprio, incluindo a geração de lucro, que não é repugnante ao propósito moral da atividade econômica: “No plano de Deus, cada indivíduo é chamado a promover o seu próprio desenvolvimento, e isso inclui encontrar os melhores meios econômicos e tecnológicos de multiplicar bens e aumentar a riqueza” (123).

Ao fazer essas observações, Francisco permanece firme na tradição de São João Paulo II, que via a economia de mercado como uma arena para o exercício da criatividade, engenhosidade e coragem humanas, e que se esforçou para atrair cada vez mais pessoas para seu dinamismo. Ele também reitera o ensino do fundador da moderna tradição social católica, o grande Leão XIII, que, em Rerum Novarum, defendeu vigorosamente a propriedade privada e, usando uma série de argumentos, repudiou os arranjos econômicos socialistas. Então, espero que possamos acabar com a besteira de que o Papa Francisco é inimigo do capitalismo e simpatizante do socialismo global.

Agora, sem nenhuma contradição, devemos, ao mesmo tempo, salientar que, como todos os seus predecessores papais na tradição do ensino social, sem exceções, Francisco também recomenda limites, tanto legais quanto morais, à economia de mercado. E nesse contexto, ele insiste no que a teologia católica clássica se refere como o “destino universal dos bens”. Vejamos como Francisco afirma a ideia em Fratelli Tutti: “O direito à propriedade privada é sempre acompanhado pelo princípio primário e prioritário da subordinação de toda propriedade privada à destinação universal dos bens da Terra e, portanto, o direito de todos ao seu uso” (123). Ao fazer a distinção entre propriedade e uso, o Papa Francisco remete-se a São Tomás de Aquino, que fez essa relevante distinção na  questão 66 da secunda secundae da Summa theologiae. Argumenta São Tomás que, por diversas razões, as pessoas têm o direito de “adquirir e dispensar” os bens do mundo e, portanto, mantê-los como “propriedade”. Porém, quanto ao uso do que legitimamente possuem, eles devem manter sempre o bem-estar geral em primeiro lugar: “Nesse sentido, o homem deve possuir coisas externas não como suas, mas em comum, de modo que, estando consciente disso, ele está pronto para transmitir tais coisas aos outros quando necessitarem.”

No que diz respeito a essa distinção, o próprio Tomás foi herdeiro de uma antiga tradição que remonta aos Santos Padres da Igreja. O Papa Francisco cita São João Crisóstomo da seguinte forma: “Não compartilhar nossa riqueza com os pobres é roubá-los e tirar seu sustento.  As riquezas que possuímos não são nossas, mas deles também”. E cita São Gregório Magno na mesma linha: “Quando nós fornecemos aos necessitados suas necessidades básicas, estamos dando a eles o que lhes pertence, não a nós.” A maneira mais simples de entender a distinção entre propriedade e uso é imaginar o cenário de um homem faminto chegando à porta de sua casa pedindo alimento tarde da noite. Embora você esteja em sua própria casa, que você possui de modo legítimo, atrás de uma porta que você compreensivelmente trancou contra intrusos, mesmo assim você seria moralmente obrigado a dar parte de seus bens para esse mendigo em necessidade. Em suma, a propriedade privada é um direito, mas não um direito inviolável sem qualquer qualificação ou condição, e dizer isso não equivale a defender o socialismo.

O que podemos caracterizar como uma novidade na encíclica do Papa Francisco é a aplicação dessa distinção às relações entre nações e não simplesmente aos indivíduos. Um Estado-nação de fato tem direito à sua própria riqueza, conquistada por meio da energia e criatividade de seu povo, e pode legitimamente manter e defender suas fronteiras; no entanto, essas prerrogativas não são moralmente absolutas. Nas palavras de Francisco: “podemos então dizer que cada país também pertence ao estrangeiro, na medida em que os bens de um território não devem ser negados a uma pessoa carente vinda de outros lugares” (124). Isso não é “globalismo” ou uma negação da integridade nacional, isso é simplesmente a distinção feita por Tomás de Aquino entre propriedade e uso, elevada a nível internacional.

Uma vez mais, para que não vejamos esse ensinamento do Papa Francisco como algo chocante, gostaria de dar a última palavra a Leão XIII, ardente defensor da propriedade privada e igualmente ardente oponente do socialismo: “desde que se esteja suficientemente satisfeito à necessidade e ao decoro, é um dever lançar o supérfluo no seio dos pobres” (Rerum Novarum, 12).

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Bishop Robert Barron

Bishop Robert Barron is the founder of Word on Fire Catholic Ministries and Auxiliary Bishop of the Archdiocese of Los Angeles. Bishop Barron is a #1 Amazon bestselling author and has published numerous books, essays, and articles on theology and the spiritual life. ARTICLE originally published at wordonfire.org. Reprinted with permission.

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